21 maio, 2009

Apocalíptico

Dez anos. Em dez anos vivi intensamente. Vivi no limite. Um dia, acerca de dois anos, falava com o Carlos como tantas outras vezes no chat. O Carlos é um cavalheiro de cerca de cinquenta anos, destes que já não existem. É um prazer falar com ele. E nesse dia, ele que raramente pergunta, perguntou-me porque eu tinha um tom tão pesado no que dizia. Estranhei. Nunca falamos de nós, além disso, falávamos de tudo. Tom pesado?! Quando o inquiri sobre o que o levava a pensar assim, respondeu-me que não sabia nada de mim, mas se tivesse de contar a minha história seria a de uma mulher, viúva, com dois filhos, com cerca de 60 anos para quem a vida não tinha sido leve.
Debaixo dos meus 25 anos de então, senti-me aterrorizada! Demorei a digerir e quando lhe respondi já foi no meio de uma gargalhada. Disse-lhe que tinha vinte e cinco. Não houve muito mais conversa sobre isso. Estou certa que não acreditou. Um dia sei que chegou a perguntar a alguém a minha idade. Desde então falamos muito menos. Não acho que o Carlos, logo ele, se tenha afastado pela diferença de idades. Não pelo que o conheço não será esse o problema. Ele, tão perspicaz não deve conseguir lidar com a sua ideia tão distante. Será inevitável falar comigo sem se recordar disso. E isso sim será algo que o incomoda.
Às vezes falamos… Mas gostaria de falar com ele como dantes. Como quando tinha 60 anos e dois filhos e um marido morto e falávamos de tudo menos de nós.
Mas também eu não sou capaz. O Carlos, mesmo sem o saber foi um marco na minha vida. Desde esse dia até há bem pouco tempo, parei. Parei de viver assim tão intensamente.
Através do Carlos, cheguei a conclusão que tinha vivido a um ritmo alucinante e que em dez curtos anos tinha experienciado tanta coisa que muitas e muitas pessoas nunca viveriam em toda uma vida longa. Foi tudo rápido de mais. Precisava parar e absorver o que tinha vivido.
Precisava pensar. Precisava parar de viver para aprender com o que tinha vivido. Naqueles dez anos pouco tempo para olhar para dentro. O “fora” atravessava-se vertiginosamente à minha frente e eu corria vertiginosamente atrás de tudo.
Parei. Decidi voltar as origens. Voltei. E durante dois longos anos vivi lentamente. Fechei-me no meu eu. Vivi comigo. Uma ou outra vez um amigo perguntava-me por mim. Outro dizia que não me reconhecia. Uma e outra vez me tentaram acordar do meu estado ora narcísico ora autista. E nada. Este meu viver tornou-se inabalável. Perdi algumas pessoas, certamente, que não se reviam em mim. Talvez tenha mesmo sido o ponto fraco de uma relação anterior. Mas estava bem assim. Acha que estava bem assim. Comecei a a habituar-me a viver mansamente. Passava leve na vida e esta era-me leve. Interagia quando me apetecia e o restante tempo ficava adormecida no meu silêncio. Perdida no tempo. E sem que me desse conta dos meus sessenta anos passei a identificar-me com os 80. Passei os serões a jogar cartas. Os dias a arrastar-me entre uma e outra obrigação. Devo ter magoado muita gente. Devo ter conseguido a calma da 3ª idade. Não tardaria tão serena que estava pronta para morrer.
Mas, de repente, muito de repente para o meu sossego, arrancaste-me do meu sonho e precipitaste comigo num sonho vertiginoso. Onde de novo sou Eu. Eu-de-antes. Eu-feliz. E nem sequer sei como chegaste até ao fundo de mim, ou meu eu mais profundo que ainda sinto o eco de ti a puxar-me para mim.
E onde terás vindo tu?
- Certamente de algum País Azul.

5 comentários:

joana disse...

Há pessoas que aparecem do nada e mudam a nossa vida completamente,mas se te sentes feliz isso é o que importa e acima de tudo voltaste a ter os teus 25 anos e a ser tu mesma.
Espero que continues nesse bom caminho

nina rizzi disse...

que texto mais sen-tido, almaazul. litarariamente é belíssimo. pessoalmente, devo dizer qu é melhor o turbilhonamento.

eu não sou nada leve (e nem sei se faço ma cara torta ou de gargalhadas).

um pesado-beijo :)

Anónimo disse...

boa tarde!
estranhamente, por vezes, o encantamento fica perdido depois de conhecerem um pouco mais do "nosso eu".
o refúgio também é necessário... ;-)
bom fim-de-semana!
beijocas

Paula Baltazar Martins disse...

Adorei esta tua partilha.

Fico feliz por teres encontrado quem despertasse o teu Eu.

Bjos

Francesca disse...

uff, fiquei sem fôlego.

Adorei.Tanto.