10 março, 2006

kitsch segundo Kundera

“Todas as crenças europeias, sejam elas religiosas ou politicas, têm por detrás de si o primeiro capítulo do Génesis, do qual se infere que o mundo foi criado tal como devia ser, que o ser é bom e por consequência, que procriar é uma coisa boa. Chamemos a esta crença fundamental acordo categórico com o ser.

Se, ainda recentemente, a palavra merda era substituída nos livros por três potinhos, não era seguramente por uma questão de moral. Apesar de tudo, ninguém pode pretender que a merda seja imoral! O desacordo com a merda é metafísico. O instante de defecção é a prova quotidiana do carácter inaceitável da criação. Das duas, uma: ou a merda é aceitável (então porque é que se fecham na casa de banho?) ou a maneira como nos criaram é que é inadmissível.

Daqui se infere que o acordo categórico com o ser tem como ideal estético um mundo onde a merda é negada e onde todos se comportam como se ela não existisse. Esse ideal estético chama-se kitsch.
É uma palavra alemã que apareceu em meados do século XIX sentimental e que depois se vulgarizou em todas as línguas. Mas a sua utilização frequente fê-la perder todo o seu valor metafísico original: o kitsch é por essência, a negação absoluta da merda: tanto no sentido literal como no sentido figurado, o kitsch exclui do seu campo de visão tudo o que a existência tem de essencialmente inaceitável.”

Milan Kundera
A insustentável Leveza do Ser;
Pp 281 e 282
Publicações Dom Quixote,
1988
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Este homem é genial. Não tenho menor dúvida!

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